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Divaldo Franco e a culpa da pandemia

Antes de tudo, devo dizer que tenho respeito pela pessoa do carismático médium baiano Divaldo Pereira Franco. Já li muitos livros de sua lavra, mas confesso que hoje prefiro outras fontes. Quero apenas fazer alguns comentários divergentes sobre o seu mais recente artigo publicado no jornal baiano A TARDE em 15 de abril de 2021 (“Ainda a pandemia”).

Divaldo começa reconhecendo a “grande catástrofe da pandemia que aturde a humanidade” mas, ao invés de fazer considerações nesse plano catastrófico, o religioso mergulha em considerações sobre os indivíduos, personalizando um problema que é, acima de tudo, social. Diga-se, para sermos francos, que Divaldo Franco não é o único a fazer isso dentro do espiritismo religioso brasileiro.

É chocante que no artigo deste importante devoto não haja nenhuma linha sobre erros e omissões das maiores autoridades públicas — isto é, as federais, ligadas ao governo Bolsonaro — na condução da crise pandêmica, pelo contrário, Divaldo Franco assegura que “providências tomadas pelas autoridades têm objetivado diminuir o contato entre os indivíduos, mantendo os cuidados estabelecidos como preventivos”. Onde? Na Bahia, governada pelo PT? Só se for, pois o Brasil sob o governo Bolsonaro se transformou em laboratório internacional de novas cepas de Covid-19 e, com isso, uma ameaça ao planeta Terra. Divaldo se omite, nada diz. Nenhuma linha!

Divaldo Franco parece, nesse artigo, viver em outra esfera de realidade. Considera o piedoso baiano que a gravidade da pandemia está em outro lugar, no campo da moral individual. Diz ele que “a rebeldia sistemática das criaturas humanas procura meios inadequados para divertir-se”. Este é o pecado! A mania desse povo de se divertir! Aí é que está o problema mundial da pandemia. Desejo de diversão! A maldita mania humana de querer ter prazer!

Diz o famoso médium que “depois desses prazeres não justificáveis, aumenta o número de pessoas contaminadas e, naturalmente, a pandemia permanece alastrando-se”.

Senhor Divaldo Franco, sinceramente, por favor!, é isso que está ampliando a pandemia no Brasil? O senhor crê que são as festas clandestinas que produziram milhares de mortes no Brasil?

É óbvio que não estou defendo nenhum tipo de boicote as normas sanitárias de isolamento social, pelo contrário, sou um aliado dos cientistas e especialistas e procuro manter todos os cuidados possíveis. Também considero essas festas clandestinas e aglomerações em bares ou churrascadas caseiras algo estúpido, egoísta, irresponsável com a comunidade e insensível com as mais de 400 mil pessoas mortas. Por outro lado, ônibus e trens lotados, de trabalhadores, obrigados a se submeter ao capital, quem se importa? Divaldo Franco escreveu sobre isso ou cobrou ações das autoridades?

Mas seriam as festas clandestinas o problema central da nova onda? Não, claro que não. E não tem um mentor espiritual que alerte Divaldo Franco disso?

É preciso questionar esse artigo. Cadê a vacinação em massa? Divaldo Franco, assustadoramente, não menciona a palavra vacina em nenhum momento do seu artigo. Por que isso? Ele apenas recomenda o básico, o fundamental. Diz o reverencioso líder espírita:

“Não facilitemos de maneira nenhuma o contágio perigoso. Evitemos a proximidade das demais pessoas, usemos máscara e utilizemos o álcool em gel após lavar as mãos com muito cuidado e demoradamente com sabão.”

Corretíssimo! Aplaudimos essas palavras sensatas!

Depois delas, como o artigo de Divaldo Franco fecha?

É chocante!

Divaldo Pereira Franco, depois de nada dizer sobre erros e omissões das autoridades públicas, especialmente do governo federal que deveria articular o combate ao vírus, ele culpa o indivíduo, agora na imagem da pessoa que, desesperada, pede orações nas redes sociais ou se encontram internadas, talvez com parentes e amigos em UTIs.

“Ensina” o caridoso senhor Franco que “muitos daqueles que se encontram afetados provavelmente se descuidaram e agora sofrem o desespero da enfermidade cruel.” A culpa de estar com Covid-19, esta “enfermidade cruel”, é “provavelmente” sua ou do seu marido, sua mãe, sua irmã, esposa ou amigo. Quem mandou não se cuidar direito? Agora fica aí pedindo orações e incomodando, quem sabe?, os “bons espíritos” ou os sacrossantos “ouvidos” de Deus. É cruel! Cruel com todas as pessoas que sofrem neste momento!

Percebem o problema desse artigo? Percebem o quanto ele tem de reacionário e enganoso? Percebem a insensibilidade com os graves problemas socioeconômicos e o espraiamento de fake news sobre o vírus? Percebem que este artigo transforma o espiritismo numa religião alienada, alinhada com os poderosos e de culpabilização pessoal?

Não desejo aqui atacar a pessoa do senhor Divaldo Pereira Franco. Longe de mim essa baixeza. Quero apenas manter o bom debate, franco e honesto, pois é impossível ficar calado diante de um artigo desse tipo. É um desserviço aos espíritas brasileiros que lutam contra o neofascismo genocida. Mais ainda, é um equívoco grave de análise do quadro pandêmico internacional e nacional, espalhando uma concepção falsa sobre o problema da pandemia que estamos vivendo e desarmando o povo brasileiro sobre os reais responsáveis pela tragédia que estamos vivendo.

O moralismo individualizado e a culpabilização microssocial não irão nos conduzir para as mudanças governamentais, sociais e comportamentais que precisamos no campo da saúde pública. O espiritismo religioso brasileiro, liderado pela Federação Espírita Brasileira (FEB) que está divulgando esse artigo, precisa acordar para isso ou se tornará uma religião arcaica, instrumento ideológico das classes dominantes, perdida em concepções enterradas pela ciência do século XXI. Kardec deve estar como?

Somente um novo espiritismo — kardecista, progressista, filosófico e comprometido com a ciência — poderá reverter essa degeneração do pensamento kardequiano no Brasil que, no artigo de Divaldo Pereira Franco, ganha um triste ícone. E é por estas e outras que muitos deixaram os centros espíritas. Marcio Sales Saraiva é escrevinhador..



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