A família na condição de objeto de especulação filosófica tem sido apreciada pelos mais diversos ângulos de inquirição teórica. A título de exemplificação, vamos vasculhar apenas algumas delas. O filósofo evolucionista e organicista Herbert Spencer considerou a família entre as instituições que dão forma à vida social (o grifo é nosso), ou seja, a família se instala no mesmo nível do Estado e dos setores representativos da sociedade civil, é um dos modeladores e reguladores da vida social (ou melhor, o primeiro deles). Já Marx e Engels, pensadores que muitas pessoas observam com um olhar atravessado, a classificam como o primeiro grupo histórico, a primeira forma de interação humana (mais uma vez o grifo é nosso). Nada mais nítido do que esta constatação. A história começou na família, bem como é na família que se trava o primeiro contato social, já que ela é o organismo primordial da construção do tecido social, como destacaremos a seguir.
Rui Barbosa cunhou a emblemática sentença que muitos de nós conhecemos tão bem: a família é a célula mater da sociedade. É, na realidade, uma bela analogia que sintetiza teoricamente o conceito de família. Visualizando a sociedade como um vasto tecido, temos o “tecido social”, um organismo vivo e dinâmico que tem na família sua célula primordial, o organismo social do qual deriva todos os demais.
Nesse viés, a família passou a ser estudada sob uma variada gama de aspectos: como unidade biológica, no campo da medicina e da demografia; como unidade de produção e consumo, na ótica da economia doméstica e da mercadologia; como unidade de organização social, no âmbito da sociologia e do direito; como ambiente de formação da personalidade, vista pela psicologia; como instrumento de transmissão cultural, olhando-se pelo prisma educacional; como a mais estável, duradoura e universal instituição social, sob o ponto de vista religioso, partilhado, é claro, pela Doutrina Espírita.
Mas há quem afirme que a família é uma instituição decadente e em via de extinção. Ledo engano. A estrutura da família continua insubstituível, mesmo fragilizada e algo insegura como na sociedade contemporânea. Tanto que aquela tradicional estrutura da “família nuclear” (pai, mãe e filhos) já foi completamente reconfigurada e hoje tem os mais diversos e ampliados desenhos. Mas, mesmo assim, continua a ser o ponto de apoio, a base de estabilidade de que dispõe o indivíduo em seus momentos de dificuldade, instabilidade e inquietação. Para onde é dirigido o nosso primeiro apelo de socorro, quando nos encontramos diante das adversidades cotidianas?
Tomemos a parábola do filho pródigo, que representa uma comovente ilustração da ideia levantada no parágrafo anterior. O jovem desejou viver a sua vida no tumulto de um mundo de aventuras e ilusões e partiu. Quando voltou, humilhado, exaurido e desiludido, lá estava tudo no seu lugar, até mesmo o pai que o recebe em festa, a despeito do desgosto do outro filho. Era ali o seu lugar. Ali ele fora feliz e não sabia. A família, para muitos, ainda é uma instância de refluxo de suas demandas existenciais. Quando em dificuldade, o indivíduo volta-se em primeiro lugar para buscar apoio na família. Conhecemos, claro, muitas famílias em que isso não ocorre, onde o ambiente familiar é hostil e repressivo e os indivíduos debandam para as ruas e praças, se tornando pessoas em situação de rua, pois se consideram (ou são consideradas pela própria família) um fardo difícil de carregar. Outros buscam a fugaz e enganosa alternativa da delinquência, da marginalidade, da criminalidade. Mas essas variantes evasivas, felizmente, ainda não viraram regra. A regra continua sendo a família como porto seguro e não como câmara de tortura.
Vamos agora raciocinar segundo a ótica da Doutrina Espírita. O ambiente familiar não atua na formação da personalidade da criança, visto que a personalidade é um atributo do Espírito, mas pode (e deve) atuar na sua reeducação, na sua reformulação, no seu reaprendizado, evitando a sua recontaminação moral, no desvirtuamento de conquistas positivas ainda não muito bem consolidadas em seu arcabouço psíquico espiritual.
O Espiritismo apresenta e recomenda o Evangelho como modelo de viabilização de um processo reeducativo no âmbito da família. O Evangelho de Jesus é um código de ética a partir do qual o Espiritismo propõe e expõe normas (vejam bem, expõe, não impõe) gerais de comportamento. Apoia-se no Evangelho para consolidar o seu conjunto de ensinamentos morais e, nesse sentido, cuidou de expor (e não impor, não é demais repetir) conceitos éticos de validade permanente, em vez de tentar regulamentar a vida por intermédio de regras transitórias, dogmatismos e proibições.
Quanto ao papel redentor da família – sob o prisma analítico do Espiritismo – se torna facilmente explicável quando entendemos que os pais não criam o Espírito dos filhos, que já é preexistente, limitam-se, pois, a proporcionar-lhes condições orgânicas para que se reencarnem. E durante a maturação deles, seria função da família colaborar no desenvolvimento intelectual e moral dos filhos. Dizemos, e enfatizamos, seria, porque a família ainda é um campo de provas, laboratório experimental do reaprendizado e do reajuste, onde nem sempre se apresenta um ambiente quase perfeito em que os integrantes da família vivem a fruir as delícias da felicidade e do entendimento. Haverá sempre, espíritos unidos por sentimentos de simpatia e afeição ao longo de várias existências anteriores, na carne ou no mundo espiritual; mas também é comum recebermos na família seres ainda desarmonizados conosco, em vista de atitudes negativas nossas e de sofrimentos que lhes impusemos, movidos por impulsos de egoísmo e prepotência.
Dessa forma, alguém poderia entender que o lar é um campo de batalha, mas não é bem assim. O Lar é um campo de trabalho e reparação. E também não nos cabe generalizar que o Espírito que recebemos como filho ou filha, esposa ou esposo venha programado necessariamente para nos cobrar dívidas “cármicas”. Não necessariamente. A convivência familiar é uma forma de reajuste e conversão de sentimentos: bons e maus. Mesmo porque os Espíritos vivem em grupos afins, ligados por interesses e afeições que se cultivam no decorrer dos milênios, ou por divergências que ainda não conseguiram eliminar.
Quando Freud concebeu as categorias psicanalíticas dos complexos de Édipo (fase do desenvolvimento psicossexual da criança do sexo masculino, que se caracteriza quando esta começa a sentir uma forte atração pela figura materna e se rivaliza com a figura paterna) e de Electra (fase do desenvolvimento psicossexual da criança do sexo feminino quando esta passa a se sentir atraída pelo próprio pai, disputando com a mãe a atenção deste homem), sequer suspeitava que estava tocando num aspecto carregado de implicações reencarnatórias. Compete à teoria da reencarnação explicitar a ocorrência de tais processos adaptativos.
Vemos, então, que o relacionamento entre os Espíritos, suas afinidades e interesses, transcendem o âmbito da família consanguínea, embora seja ela o campo de trabalho onde seres desarmonizados entre si reúnem-se para a tarefa de reajuste e integração. O mecanismo das vidas sucessivas aproxima Espíritos uns dos outros para viverem, juntos, experiências redentoras e desenvolverem planos evolutivos vitais à felicidade de cada um e de todos. A família consanguínea é célula de um organismo mais amplo que é a família espiritual, que, por sua vez, se constitui célula da instituição infinitamente mais vasta que é a família universal.
Assim, na condição de foro natural dos problemas humanos e núcleo das experiências retificadoras, a família é instrumento da redenção individual e, por extensão, restauradora do equilíbrio social. Melhorando a família, aprimoramos a sociedade.
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